ACADEMIA 

Esta é uma noite comum para tantos, mas cheia de honra para mim. É grande a tentação de parecer erudito e falar da origem da Academia de Platão em 383 aC, ou ainda relembrar que a designação deste tipo de instituição deriva de um lendário herói ateniense, Academos. Talvez comentar as discussões de Isaac Newton com Robert Hooke nas reuniões de Royal Society, uma vez que Hooke, que descobriu a célula, insistia em afirmar que o grande Newton havia aproveitado das suas ideias sobre força gravitacional. Foi nessa discussão que o grande cientista de Cambridge, com ironia tão fina quanto seu nariz, afirmou, "Se enxerguei mais longe, foi por estar de pé sobre ombros de gigantes." Hooke era um homem de baixa estatura.

As lembranças de uma tarde de descobertas na biblioteca na Universidade de Birmingham, contudo, pedem que eu fale de uma sociedade sem estatuto, academia sem muros, de uma reunião de mentes brilhantes que só ocorria em noites de lua cheia, pois dependiam do brilho do luar para iluminar o caminho de volta para casa. Era a Lunar Society. Seus membros se autodenominavam “lunáticos”. Quem eram eles? John Smeaton, pai da engenharia civil; John Michel, pai da sismologia; Thomas Beddoes, médico que, baseado na constatação de que açougueiros tinham menos tuberculose, instalou um curral de vacas ao lado da enfermaria para que os pacientes desfrutassem das baforadas dos bovinos resistentes ao bacilo de Koch. Foi ridicularizado, mas poucos anos depois a vacina contra a varíola obtida, por Jennerbergan, contou com o auxílio de simpáticas vacas.

Não finda aqui a lista de lunáticos. Baron kelvin foi o primeiro a produzir tubos de ferro que por muito tempo, e até hoje, conduz água às casas. Thomas Percival, eminente epidemiologista e criador do primeiro código de ética médico. James Hutton, pai da geologia moderna.

Poderia citar outros tantos, mas finalizarei a lista com dois médicos e um visitante famoso. Erasmus Darwin, avô de Charles, foi um dos fundadores da Lunar Society. Médico, poeta e abolicionista numa época em que este não era um assunto para o chá das cinco. Teve a dignidade de recusar convite para ser médico do Rei George II. O outro, Willian Withering, observou que uma pobre mulher com “edema” secundário à insuficiência cardíaca, havia melhorado com uso de medicação natural. Não desprezou a cultura popular e identificou o digital nas folhas de “foxglove”. Após quase 250 anos é um elixir que ainda usamos. O visitante? Benjamin Franklin, o maior dos americanos, também participou daquelas reuniões dependentes do luar. Afirma-se que eram reuniões sociais, o verdadeiro debate científico ficava por conta de correspondência. Honravam o correio de sua Majestade.

Era uma reunião de cientistas sem paredes, assim como Darcy Ribeiro um dia sonhou a Universidade de Brasília. O que é o “minhocão” senão economistas, advogados, químicos e engenheiros estudando lado a lado? A Lunar Society mostrou que o saber e o desenvolvimento científico não têm endereço fixo, tampouco muros a delimitar universidades.

Volto a Atenas para aprender que havia uma placa na entrada advertindo “Ninguém que não seja geómetras entra aqui”. Deixo a Grécia e a Inglaterra do século XVIII para falar da nossa Academia, usando o exemplo de Platão e dos lunáticos. Dos gregos herdamos o nome e modificamos placa; lá só entrava quem sabia geometria, aqui só entram médicos. Da sociedade da lua herdamos o encontro mensal, científico, fora do campus. Nenhum de nós se vangloria de ter o brilhantismo que a história atribui àquele grupo britânico, mas é certo, que me é concedida a graça de presidir alguns dos mais renomados médicos desse planalto central e, lembrando o Juscelino Kubistchek, dessa solidão que se transformou no centro das mais altas decisões nacionais. Deveríamos nos encontrar nas noites de lua cheia, mas nos tempos de hoje, nestes trópicos, roubaram-lhe o romantismo de outrora. Passou a ser a noite dos vampiros e assombrações.

Assim como as reuniões da lunar Society não tinham como tema, química, geologia ou engenharia, também na Academia de Medicina não discutimos nenhuma especialidade, mas sim condições ligadas à saúde, em especial seus aspectos no Distrito Federal. Também refletimos sobre educação médica e ética, conjunto de princípios e valores desgastado em todos os extratos da sociedade brasileira, sendo inexistente em muitos que exercem o poder.

Compreende-se melhor o significado de saúde com o olhar da sociologia. O impacto do baixo nível educacional é enorme e duradouro. O gradiente social manifesta-se até mesmo na velhice.  Idosos com baixa escolaridade têm maior nível de incapacidade nos anos tardios, independente da doença básica. Esta situação revela a acumulação de desvantagens descritas no chamado efeito Mateus, baseado nas afirmações do apóstolo evangelista em 25:29: “Porque a todo o que se tem se lhe dará,  terá em abundância; mas ao que não se tem, até o que tem lhe será tirado”. Assim vantagens precoces na vida podem favorecer vantagens maiores no futuro, enquanto as desvantagens favorecem a acumulação progressiva de desvantagens, principalmente na saúde. Daí não compreender a associação de mais médicos, mais saúde, como justificativa para incentivar a abertura indevida de faculdades de medicina. O Aedes aegypti nos mostra que a educação para não acumular lixo, a falta de saneamento em 45% dos lares brasileiros e a ineficiente coleta de resíduos sólidos, não desaparecerão com uma vacina. Aos médicos, diante da omissão governamental, mais antiga que a revolta de Canudos, resta usar a tecnologia para constatar microcefalia e comunicar este fato às mães desesperadas. O desprezo pela epidemiologia e saúde pública tem um alto custo social.

Se não temos o luar a iluminar o caminho, mantemos acesa a chama que ilumina os valores da medicina. A modernidade, com seus acertos e erros, não poupa os médicos. Muitos, em especial os mal formados, são consumidos pela pressa, pela realização imediata de suas fantasias de riqueza e consumo. São seduzidos pela falsa formação, expressa em cursos sem reconhecimento; querem se tornar especialistas sem terem nada de especial. Constituem, em verdade, o resultado da formação sem mestres; não me refiro à conhecida qualificação acadêmica. Avicena, Galeno, Charcot, Freud, Osvaldo Cruz, Zerbini, Hilton Rocha, Francisco Pinheiro da Rocha, Antônio Márcio Lisboa, Edno Magalhães e Oscar Mendes Moren são mestres; a maioria absoluta dos acadêmicos o é. No momento em que alto porcentual dos graduados não tem acesso à residência médica, quais serão seus referenciais? Como procederá o jovem formando diante da morte de um paciente, sem nunca ter discutido o significado de humildade, misericórdia e solidariedade? Comumente associa-se morte à falha; pensam que assinar um atestado de óbito constitui confissão de culpa. Resulta que as UTI´S estão cheias de mortos vivos, vítimas de distanásia, sem direito à morte digna. Na medicina de hoje sobra tecnologia, mas falta filosofia.

Digo isto porque a tecnologia moderna tem grande impacto na prática da medicina, contudo sua valorização é maior do que merece. Só se acredita no que a imagem mostra, naquilo que o aparelho dosa ou mede. Dor, angústia, desespero e insegurança nem sempre são reconhecidos. Os problemas emocionais costumam ser ignorados. O bom médico sabe como atuar ao lado das maravilhas tecnológicas, sem abandonar os valores e princípios que dão suporte à boa prática. Eis aí uma missão para esses lunáticos sem lua da Academia de Medicina de Brasília.

 Não tenho queixas do destino, pois trilhei caminhos felizes. Se agora a doença me surpreende, não reclamo. Recuso-me a lamentar por, nas palavras de Susan Sontag, ter passado a usar o passaporte daquele outro lugar que não o reino da saúde.  Não avalio minha vida pelas adversidades de hoje, mas pelas realizações e alegria de sempre. Nunca me faltaram as mãos amigas de Euler Ribeiro, Adelson Alves e Eliseo Sekyia. Tampouco o amor de Suleica, minha esposa, que sempre estará ao meu lado na pobreza e na riqueza, na saúde e na doença.

Tenho agora uma dívida impagável, até porque o que tem valor na vida não é precificável, com os colegas da Academia, que reforçaram minha convicção de que viver não é apenas locomover-se e colocar medalhas no peito. A vida não é uma questão de biologia, mas sim de biografia.

Obrigado

 

Brasília. 22 de março de 2016