Discurso na cerimônia de concessão do título

Cidadão Honorário de Brasília 08/08/2016

                                                    Renato Maia Guimarães

A última vez que minhas pernas foram exigidas ao extremo, foi na maratona de 50 anos de Brasília. Corri com meus companheiros do então Centro de Medicina do Idoso. Nossas camisetas suadas estampavam a frase “Nós cuidamos dos candangos”. Cada passo rápido, diante dos ministérios ou, respeitosamente, observando as tortas árvores barrocas que formam o cerrado, me levava de volta ao velho rádio Telefunken, que cochichou ao meu ouvido infante a construção da capital da esperança e me encheu de sonhos. Passava as férias em Mato Grosso onde aprendi a reverenciar pequi e a chamar “cabeceira”, o que para Guimarães Rosa eram veredas. Comi a poeira vermelha do sul de Goiás, banhei nos rios cristalinos do cerrado arenoso. O sonho era ver a futura capital regendo uma sinfonia de progresso para a região centro oeste, sem espantar os pequizeiros, o lobo guará e as araras. Não tardou muito a hora de conhecer e dizer muito prazer à Brasília.

         As quase três horas sacolejando numa Kombi me pareceram inúteis, quando a declaração “chegamos”, me mostrou uma cidade de tábuas e poeira tão grudenta como a do Triângulo Mineiro. A ingenuidade infantil perguntava “onde estão os Palácios?” Para mim a justificativa de que estávamos na cidade livre era enganadora. Aos meus olhos a capital era uma cidade feia, poeirenta, erguida com madeira. Voltei contrariado à perua de motor franzino, mas 20 minutos depois tive a visão que não desgruda do meu coração: Brasília. Brancura de cidade romana, da qual também poderia ter adotado a localização por pontos cardeais. O tempo e as peregrinações me trouxeram a dúvida: seriam norte, sul, leste e oeste inspirados na colonial Puebla, no México? À minha frente estavam os palácios, as colunas do Alvorada, as cascatinhas da Justiça e as mãos em prece da catedral. Quis o destino que eu visitasse dezenas de igrejas no mundo, para chegar à conclusão que hoje lhes confidencio: nossa catedral é a mais linda.

Na viagem de volta trouxe na minha bagagem emocional a certeza da criança que ignorava as incertezas da vida: vou viver aqui.

Vivi ali e acolá, mas acabei por realizar a auto promessa de anos passados: vim morar e me orientar no avião de pontos cardeais, enfeitado por ipês roxos, amarelos ou brancos.

Minhas filhas brincavam nas superquadras enquanto eu tentava fazer algo que me permitisse acreditar que contribuía para a cidade que Juscelino construiu com fé e determinação,

herdadas, talvez, dos garimpeiros que buscavam diamantes em Diamantina. Formado em Geriatria nunca me senti estranho na cidade jovem; homens que aqui chegaram aos trinta em carroceria de caminhão continuaram suas viagens no tempo. Poucos ou não, mereciam cuidados.

A medicina me aproximou de Sarah Kubitscheck, a mais digna dama que conheci e de Affonso Heliodoro, o mais leal dos amigos, de quem ganhei a foto de JK que guardo em meu escritório e que me acompanha neste instante. Mais uma prova da generosidade desta cidade e de sua gente, algo que os jornais nacionais desconhecem, preocupados apenas com hóspedes ocasionais que repetidamente nos envergonham.

As oportunidades bateram à minha porta; recebi mais do que merecia. Confesso uma ponta de orgulho por ser conhecido como Renato Maia, de Brasília. Como se fosse sobrenome. A dura viagem na Kombi valeu a pena. Posso parecer pretensioso, mas aspiro fazer parte do tombamento da UNESCO, não para manter a aparência; pela garantia de que a imagem no coração de menino nunca esvanecerá.

         Minas, minha querida Minas, sabe que não a estou traindo ao jurar amor à cidade maestrina, que cumpriu a promessa de reger a sinfonia do desenvolvimento no centro-oeste e norte do Brasil. A solidão que se transformou no cérebro das decisões nacionais, o vazio que se encheu de esperança, a mesma que aduba a grama hoje seca, esperando as primeiras gotículas de chuva para transmutar-se em manto verde a recobrir a cidade. Nasci nas franjas do sertão das Gerais, nasci de novo em Brasília.

         Volto à maratona de despedida das pernas. Passei pela cristaleira do Planalto e suas bandeiras, pelas cascatinhas encantadas e parei cansado no meio da multidão com um sentimento de paz e realização, a despeito da força que se esvaia. A mesma paz com que hoje venho a este plenário registrar meu segundo nascimento.

         Obrigado candangos que dormiam nas casas de tábua que desprezei na infância, obrigado aos romanos ou a Puebla por nos emprestar o rumo, obrigado à Deputada Celina Leão pela honra de ser madrinha desse segundo batismo; mais que tudo, obrigado à fotografia que me acompanha enquanto escrevo. Obrigado Brasília.