A HISTÓRIA DA MEDICINA DE BRASÍLIA CONTADA PELA ACADEMIA

 

dr ednoAcad. Edno Magalhães (Cadeira 10)

Parte 2

 

Eram 15h do dia 14 de março de 1985. Estava em casa juntando documentos para a declaração de imposto de renda, quando recebi um telefonema do diretor do nosso hospital que agora já se chamava Hospital de Base do Distrito Federal (HBDF). O diretor me pedia que mantivesse o telefone ligado pois ocorreria um atendimento no hospital no qual ele precisaria da minha participação como profissional. Disse-me ainda que por telefone não poderia falar sobre o paciente. No restante da tarde e início da noite continuei a receber muitos avisos da parte do diretor, sem que me fosse dito exatamente do que se tratava.

Às 21h do dia 14 de marco de 1985, fui convocado ao hospital: deixei claro que participaria do atendimento desde que me dissessem qual era o caso, quem era o paciente e quem seria o cirurgião. Não foi surpresa para mim saber que o cirurgião era o Dr. Francisco Pinheiro Rocha. Estávamos acostumados a atender juntos políticos influentes e membros do corpo diplomático de Brasília. Entretanto foi uma grande surpresa saber que o paciente era o futuro quase presidente da república. A agitação em Brasília nesta altura era grande, envolvendo autoridades e políticos que se encontravam na cidade.

Este atendimento e os desdobramentos seguintes foram aumentados no decorrer do tempo com informações falsas, invencionices e todo tipo de maldade que poderia ocorrer em função da importância política que envolvia aquele paciente. Somente consegui ficar a sós com o paciente e sua esposa, que o acompanhava, durante 35 minutos antes da decisão de se iniciar a cirurgia. O paciente negava qualquer informação a respeito de doenças ou uso de medicamentos, dizia que usava apenas vitamina E. O que eu tinha como informação até então era um hemograma indicativo de infecção, boatos de um mal estar cardíaco em uma viagem ao exterior (o que era negado pelo paciente). Havia também o resultado de uma cineangiocoronariografia realizada em 1977 onde se lia: Área de ventrículo esquerdo com hipocontratilidade pronunciada e uma obstrução na descendente anterior. Notava-se ainda que o paciente apresentava uma respiração tipicamente abdominal própria do idoso sedentário.

O ato anestésico iniciou-se com o auxílio de mais três colegas anestesiologistas à 01h do dia 15 de março 1985, no centro cirúrgico central do 1º HDB e o ato cirúrgico, à 1h10min. Às 03h30min com o paciente respirando espontaneamente e com reflexo de vias aéreas presentes foi realizada a extubação traqueal. Foi necessário utilizar furosemida (2 ampolas) e aguardar o aumento da diurese e diminuição dos estertores de base que reduziram-se bastante com o aumento da diurese. A pressão arterial e a frequência cardíaca eram totalmente normais às 5:00hrs, quando acompanhamos o paciente na maca até a UTI.

Respirava espontaneamente, estava consciente e hemodinamicamente estável. Estas eram as condições de admissão na UTI, verificadas pelo plantonista que recebeu o paciente, conforme consta no seu prontuário. Nenhum Raio-X de tórax realizado durante a internação do paciente mostrou sinais de aspiração de conteúdo gástrico ou pneumonia. Infelizmente, no pós operatório desse paciente ocorreram muitas interferências que na realidade, foram as responsáveis pelo trágico desfecho desse caso.

Resolveu-se reunir uma equipe de “notáveis” composta por cinco ou seis professores de fora de Brasília, entre eles um “professor de São Paulo”, que veio acompanhado de dois assistentes. Das reuniões de notáveis resultou uma segunda intervenção no dia 20 de março por insistência do referido professor que realizou a cirurgia com o auxílio do Dr. Francisco Pinheiro Rocha, que elegantemente lhe passou a posição de cirurgião. Resultado: laparotomia branca, como falamos nos meios cirúrgicos para cirurgias nas quais nada se encontra.

No pós operatório dessa segunda cirurgia o professor e seus assistentes insistiram em passar uma sonda via esôfago até o duodeno, apesar de termos avisado que era praticamente impossível passar uma sonda gástrica ou qualquer outra em virtude de uma grande hérnia diafragmática do paciente. Essas manobras resultaram em sangramento e na transferência do paciente para o Hospital do Coração em São Paulo, sob a responsabilidade do referido professor e seus assistentes.

Lá o paciente foi submetido a mais dois atos cirúrgicos (em 26 de março e em 12 de abril), além de outros procedimentos intermediários para tratamento de hérnia estrangulada, drenagem de abscesso intra-abdominal e traqueostomia. No dia 21 de abril de 1985 foi declarado o óbito desse paciente.

Participar desse caso, foi a atuação que mais me incomodou em toda a minha vida profissional, já agora com mais de 50 anos, principalmente pelo comportamento inadequado e antiético daquele “professor de São Paulo”. Procurei omitir todo e qualquer nome de participantes do grupo, citando tão somente o do Dr. Francisco Pinheiro Rocha como uma homenagem pela sua atuação respeitável, ética e de excelente postura profissional e o grande injustiçado deste caso.