A HISTÓRIA DA MEDICINA DE BRASÍLIA CONTADA PELA ACADEMIA

Acad. Antônio Márcio Junqueira Lisboa

Parte 2

dr lisboa                                                       A primeira visita

 

Preciso confessar que eu detestava Brasília, sem conhecê-la. Acreditava que sua construção havia sido a causa principal do processo inflacionário que assolava o país. Já havia recebido inúmeros convites para visitá-la, todos gentilmente recusados. Eu não gostava de Brasília.

Cheguei aqui no dia 28 de janeiro aqui cheguei para encontrar-me com os Professores José Roberto Ferreira, vice-reitor da Universidade, e Luis Carlos Lobo, diretor da  Faculdade. Trouxe comigo minha esposa Therezinha e meu filho mais velho, Antonio Márcio Júnior, para compartilharem da decisão de uma eventual  mudança, que, sem dúvida, seria muito traumática. Eu e Therezinha éramos filhos únicos, de pais idosos. Meus pais haviam acabado de comprar um apartamento ao lado do meu, para ficarem próximos a nós e aos netos.  Minha clínica, só menor do que a do  meu saudoso amigo Rinaldo Delamare, era formada por um grande número de amigos e de mais de duzentos filhos de colegas. Eu ganhava em torno de 10.000 cruzeiros mensais e iriam pagar-me 1.250, em dedicação exclusiva.

Em 1967, o campus estava em construção. A Faculdade estava localizada no Instituto Central de Ciências – o Minhocão. Como o nome indica, era uma construção linear, de quase um quilômetro, inacabada, construída com cimento cru.  Aí estavam localizadas a direção e os laboratórios da Faculdade. O “hospital universitário” – o Hospital Rural de Sobradinho – era um barracão de madeira, localizado em Sobradinho, cidade satélite com 30.000 habitantes, a trinta quilômetros de Brasília.

A Faculdade de Ciências Médicas seria estruturada com proposições revolucionárias como “formar um profissional indiferenciado, capaz de atender às necessidades básicas de saúde da população – promoção, prevenção, recuperação e reabilitação – em diferentes níveis de atenção – primária (domiciliar, postos e centros de saúde), secundária (hospitais comunitários), e terciária (hospitais especializados e maternidades)”. Para que esse objetivo fosse atingido, impunha-se a implantação de um currículo e de metodologias educacionais diferentes dos existentes em outras escolas. Uma das principais inovações era a de acabar com a fragmentação do ensino provocada pela existência de inúmeras disciplinas autossuficientes, que impediam uma visão holística do ser humano.

Era tudo que eu queria: implantar minhas ideias partindo do zero.  Além disso, as promessas que me fizeram para que eu viesse trabalhar em Brasília foram tão boas, que meu filho dizia que o Lobo tinha muita força, porque tudo o que eu pedia, eles concordavam em dar-me. Graças a Therezinha, minha esposa, e ao incentivo de meu querido mestre Luiz Torres Barbosa pude concretizar mais este sonho – tornar-me professor universitário. Em 1º de fevereiro, já estava com meus filhos matriculados no colégio Dom Bosco. Voltei para Rio e trabalhei até o dia 1º de março, para pagar minhas dívidas. Havia optado por sair do Hospital dos Servidores do Estado, uma das glórias da medicina brasileira, para trabalhar no velho e decadente Hospital Rural de Sobradinho.

Chegando aqui, fui morar em um apartamento na SQS 313. Fiquei cerca de um ano almoçando e jantando em mesas improvisadas com tábuas e caixotes, com meus livros espalhados pela sala. Os móveis prometidos só chegaram um ano após.

O Ensino na Faculdade de Ciências Médicas 

No dia 8 de agosto de 1966 iniciaram-se as aulas na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Brasília.  Comecei minhas atividades dia 15 de março de 1967. Existia um compromisso da escola com a assistência à saúde da população de Sobradinho. Embora os docentes ensinassem e pesquisassem, o bem-estar da comunidade estava acima de qualquer outro compromisso. Os legítimos interesses do ser humano prevaleciam sobre os dos docentes (pesquisa e ensino), dos discentes, e até mesmo, dos funcionários.

Os alunos participavam não apenas em atividades do hospital universitário como também em unidades qualificadas do sistema de saúde – hospitais comunitários, serviços de urgência, centros e postos de saúde, programas de atendimento domiciliar. Era enfatizada a importância da promoção e proteção da saúde, e da prevenção das doenças. A medicina deixava de ser essencialmente curativa, para ser preventiva. As atividades de ensino eram regionalizadas e hierarquizadas, tal como ocorre com a assistência. No topo da pirâmide, se encontrava o hospital universitário e, daí até a base, unidades de saúde de complexidade decrescente, até chegar aos domicílios.

A integração docente-assistencial permitiu a utilização para o ensino da rede de serviços de saúde. Trabalhar com a comunidade para melhorar suas condições de saúde, e mesmo de desenvolvimento, é uma atividade recomendada. Nos programas de integração docente-assistencial, as atribuições didáticas são conferidas, por delegação ou convênio, às diferentes unidades de saúde, cabendo, à escola médica, a  definição dos objetivos educacionais, a supervisão e a avaliação dos alunos.  Neste modelo, a escola médica assume um compromisso com a saúde da população, participando das atividades de assistência e formando médicos socialmente necessários e aceitáveis, que respondam às exigências de uma determinada comunidade.   O progresso científico tem mostrado que a saúde tem dimensões além da biológica, como a ecológica e a social.

A integração docente-assistencial é fundamental para a formação do médico denominado geral, ou generalista, ou simplesmente médico. Neste modelo, valoriza-se o professor competente, inteiramente dedicado à saúde das pessoas, aos alunos, às atividades de extensão e de pesquisa, que  desempenham um papel de liderança na comunidade e  participam ativamente de decisões que envolvam o bem-estar coletivo, sejam elas de natureza médica ou não. Os docentes deverão ser avaliados pelo seu desempenho como cidadãos, como médicos, como professores e como pesquisadores.

A Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Brasília adotou o paradigma holístico e a integração docente-assistencial.