A HISTÓRIA DA MEDICINA DE BRASÍLIA CONTADA PELA ACADEMIA

                                                                                            Acad. Antônio Márcio Junqueira Lisboa

dr lisboa                                                                           Parte 3

 

                                      A Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho

   

Em maio do mesmo ano, mudávamos para a Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho (UISS), a cem metros do primeiro hospital, que iria sediar a maior experiência pedagógica relacionada com o ensino médico no país. O desafio era formar médicos em um hospital comunitário responsável pela saúde dos habitantes de uma pequena cidade, contando com um corpo docente constituído, em sua maioria, por professores sem titulação universitária, trabalhando em tempo integral e dedicação exclusiva. A mudança para a UISS, que durou cerca de dois meses, foi feita pelos professores e funcionários. Nesse período, para atender os pacientes, tínhamos que correr de um hospital para outro, chafurdando na lama.

Profissionais competentes e com alto grau de comprometimento social foram ali formados e hoje, ocupam posições de destaque no meio médico. Essa experiência pedagógica, vivida intensamente, permitiu-me concluir que para serem formados bons médicos generalistas, capazes de promover, proteger e recuperar a saúde de 80% da população necessita-se, sobretudo, de um corpo docente motivado, dedicado e competente, que goste de ensinar e esteja profundamente comprometido com as necessidades sociais e de saúde da população. 

Estágio RuralCom a finalidade de promover a integração de programas de promoção da saúde e prevenção de doenças com os de recuperação (hospitalares), pela primeira vez no Brasil alunos de uma escola médica foram enviados para estagiar em áreas rurais, urbanas, em centros de saúde. Pioneiro em nosso país, o programa de integração docente-assistencial iniciado em 1968 por nós e pelo grande sanitarista Dr. Átila de Carvalho, na Unidade Sanitária de Planaltina, foi um sucesso. 

Objetivos Educacionais – Em 1969, também pela primeira vez no Brasil, foram definidos os objetivos educacionais e as competências a serem alcançadas em cada local de estágio pelos alunos, internos e residentes, registrados em várias publicações, que foram largamente utilizadas como modelo no país e no exterior.                                       

A Residência – A Comissão de Promoção de Programas de Residência em Pediatria na América Latina, da Academia Americana de Pediatria, indicou como modelo o Programa de Residência da Faculdade de Ciências da Saúde. A Residência de Pediatria na UISS foi considerada a mais completa do Brasil pelo Professor Eduardo Marcondes, presidente do Comitê de Residência em Pediatria da Sociedade Brasileira de Pediatria. A excelência do ensino da Pediatria na Universidade de Brasília pôde ser atestada pelas inúmeras visitas de especialistas nacionais e internacionais.

Disciplina de Neonatologia – Conseguimos implantar ou modificar algumas atividades assistenciais, assimiladas por um grande número de serviços de pediatria. Em 1967, criamos, pela primeira vez no país, as disciplinas de Neonatologia e Crescimento e Desenvolvimento, hoje existentes em quase todas as escolas médicas.

Programa Mãe-Acompanhante – Entre outros programas dedicados à humanização da assistência, destacou-se o da mãe acompanhante. Uma das práticas hospitalares era a de permitir a visita dos pais em certos dias da semana ou, na melhor das hipóteses, algumas horas por dia. Esse tipo de prática era capaz de originar problemas emocionais nas crianças, de gravidade variável, conhecidos como hospitalismo psicossocial. Em 1969, resolvemos promover a permanência das mães nas enfermarias, para acompanhar seus filhos. Esse programa, chamado de “mãe acompanhante”, “mãe participante”, “internação conjunta mãe-filho”, após uma fase de dificuldades de aceitação, principalmente pelo corpo de enfermagem e pela direção do hospital, foi tão bem sucedido que foi implantado em todos os hospitais de Brasília, passou a ser um programa prioritário da Sociedade Brasileira de Pediatria e foi incluído no Estatuto da Criança e do Adolescente, tornando-se obrigatório. O programa “mãe acompanhante” foi objeto de inúmeras palestras e conferências no Brasil e no exterior.  

 

O Governo Militar 

 

Em Brasília consegui realizar tudo aquilo que eu desejava como professor e médico, ao custo de alguns sofrimentos e decepções.

Em 1975, fui perseguido tenazmente pelo vice-reitor José Carlos de Almeida  Azevedo, oficial da Marinha, ligado aos órgãos de repressão, cuja real motivação desconheço até hoje. Pressionou-me e sem meu consentimento, mudou o meu regime de trabalho de dedicação exclusiva para 12 horas, o que significava perder a Chefia do Departamento e da Pediatria, e ter o salário reduzido à quarta parte. Embora avisado por amigos, temerosos de que medidas repressivas mais violentas fossem tomadas, entrei com uma ação trabalhista contra a Universidade de Brasília. Fui convocado para uma sessão na Justiça do Trabalho.

Na véspera, à tarde, meu filho, que estudava na Universidade, foi sequestrado. Um claro recado. Poucos dias após, foi-me feita uma proposta: soltar meu filho contra a retirada do processo. Não aceitei.  Resolvi sair da Universidade, até que o vice-reitor, depois premiado pelos militares com a reitoria, fosse afastado, o que ocorreu em 1985. Meu filho, denunciado por alguém da Universidade como elemento importante de uma célula comunista, foi preso, torturado e libertado cinquenta dias após, com um pedido formal de desculpas da Policia Federal a ele, a mim e à minha esposa. Na Policia Federal soube do nome de quem havia solicitado sua prisão – a pessoa de quem eu já suspeitava. Afastei-me na Universidade por nove anos, até a saída do comandante, que havia assumido a Reitoria. Voltei em 1985, por insistência do Reitor Cristovam Buarque. Therezinha foi minha grande companheira, em todo esse sofrimento.