A HISTÓRIA DA MEDICINA DE BRASÍLIA CONTADA PELA ACADEMIA

                                                                                                               

dr ronaldoAcad. Ronaldo Mendes de Oliveira Castro (Cadeira 40)

Parte 2

Não posso deixar de relatar circunstâncias médico-éticas que muito me afetaram. A primeira passou-se durante o Regime Militar, em 1966, ocasião em que recebi um telefonema aflito de uma senhora, esposa de um cliente meu do Banco do Brasil, suplicando-me que fosse ao Batalhão da Guarda Presidencial (BGP), examinar seu marido que lá se encontrava preso há dois meses e enfermo. Fomos o enfermeiro Santiago e eu, na ambulância do Banco do Brasil, tentar ter acesso ao paciente, para examiná-lo. Com muita dificuldade, conseguimos entrar no quartel. No entanto, recebemos através do tenente a informação de que não seria permitido atendê-lo, devido à alta periculosidade do mesmo. Consegui que imprimissem no meu receituário minha suposição diagnóstica e o fato de que embora estivéssemos ali, havíamos sido impedidos de examiná-lo, não podendo, portanto, assumir nenhuma responsabilidade pelo que viesse a acontecer.

Imediatamente, o Coronel deixou que o examinasse, e novamente nos deparamos com um fato pungente. Enquanto, o sargento e cabos que nos conduziam, chamavam pelo meu cliente, vários detentos, num pavilhão com cerca de trinta colchões no chão, pediam-me que anotasse nome e telefone deles, para informar às esposas e famílias, de que ainda estavam vivos. Fui impedido de fazê-lo e ameaçado de prisão se não cumprisse suas ordens. Dois dias depois três militares (“catarinas”, como eram chamados) bateram na porta do meu consultório no ambulatório do 1ºHDB, acompanhando o preso que eu havia visto no quartel e pedido exames. Enquanto fui com o meu cliente tirar umas radiografias dos pulmões, fiquei ciente do grau de tortura que sofrera. Creio que era considerado de alta periculosidade, devido a ter sido auxiliar de informações do 1º Ministro no período Parlamentarista.

Dias depois recebo um telefonema à noite onde, sussurrando, a pessoa me pedia que fosse ao seu apartamento, pois como estava com uma pneumonia bilateral, fora solto para que não viesse a falecer no quartel. Ao visitá-lo, defrontei-me com uma cena profundamente chocante e triste. Havia telefonado para o seu advogado, o grande jurista Dr. Sobral Pinto, que lhe dissera para que fugisse do Brasil, pois tornaria a ser preso quando melhorasse. Nunca mais o vi, porém fiquei sabendo que morrera uns três anos após, na fronteira com o Uruguai.

Em 1969, mudei mais uma vez o rumo da medicina que praticava e resolvi conhecer uma faceta do ser humano que me era desconhecida, mas que frequentemente surgia no meu consultório – os distúrbios psíquicos-emocionais. Já com quatro filhos pequenos, consegui bolsa de estudos para especialização em Psiquiatria na Europa, por dois anos. O nosso quinto filho, gerado em Genebra, veio a nascer em Brasília, enquanto ainda lá me encontrava.

Estudei Psiquiatria como especialização, na Universidade de Madrid (Espanha), no serviço do Prof. Juan José López Ibor (1967-1968) e, em continuação, na Universidade de Genebra (Suíça), na Clinique Bel Air, com o Prof. Julian de Ajuriaguerra. A Psiquiatria na Universidade de Madri seguia a metodologia Fenomenológica e a de Genebra, uma orientação mais psicodinâmica. Foi certamente o contato com a Psiquiatria Psicodinâmica, cuja a abordagem era mais ancorada na Psicanálise e com atividades com grandes psicanalistas da época, tais como Dr. René Diatkine e o Dr. S. Lebovici, que aumentou o meu interesse pela Psicanálise. Foi na Clinique Bel Air que escrevi o trabalho Les bouffés délirants aigües.

No final do ano de 1969, retornei à Brasília, assumindo em seguida a chefia da  Unidade de Psiquiatria do 1ºHDB. Procurei implantar algumas das atividades que havia aprendido na Europa, principalmente em Bel Air, como por exemplo, as reuniões matinais com toda a equipe da Unidade. Chamadas de rapports (relatórios), éramos informados, por meio dos colegas e da enfermagem, o que havia se passado com os pacientes na Unidade, principalmente à noite.

Em julho de 1970, tivemos como era habitual, uma reunião dos Chefes de Unidades do HDB, para discutirmos as necessidades de cada uma delas. Nesta, porém, estava presente o irmão do Governador Prates da Silveira, o Dr. Caio Prates da Silveira. Nosso propósito era conseguirmos mais prontamente os materiais de cada Unidade que estavam em falta. Qual foi nossa surpresa, em outubro do mesmo ano, quando quatro de nós fomos chamados a comparecer ao gabinete do Diretor do Hospital. Lá chegando, recebemos das mãos dele o que se chamava de “bilhete azul”, ou seja, um documento assinado pelo então Secretário de Saúde, o Dr. Simões, nos demitindo sumariamente, sem que nos explicassem os motivos. Os quatro demitidos foram os Drs. André Esteves Lima, João da Cruz, Ubiratan O. Peres e eu. O único boato que ouvi foi o de que teríamos criticado o Dr. Simões (Secretário da Saúde) e o Governador Prates da Silveira. Passaram-se quinze anos para que tomasse conhecimento do real motivo da minha demissão.

O livro “Brasil Nunca Mais” havia sido publicado pelo Arcebispado de São Paulo, o qual tinha tido acesso a alguns processos da Justiça Militar do tempo da Ditadura Militar de 1964. Lá constava uma parte do laudo que eu havia fornecido em carácter confidencial ao então Diretor do 1ºHDB. O laudo se referia ao segundo caso de tortura que eu acompanhara no HDB, enquanto chefe da Psiquiatria. Tratava-se de uma estudante da UnB, com cerca de 20 anos, que fora internada no hospital, vinda do Batalhão da Guarda Presidencial. Encontrava-se em estado de pânico, seu olhar era de medo, de sofrimento. Não revelava nenhum movimento corporal e não pronunciava qualquer palavra. Por prudência, solicitara ao neurologista João da Cruz um exame neurológico, que nada revelou.

Sua confiança em mim foi aumentando na medida em que foi conseguindo me reconhecer. Disse-me que eu a havia examinado para admissão como funcionária do Banco do Brasil, há alguns anos. Também a reconheci, pois coincidentemente, era irmã da secretária do Diretor do Hospital e também irmã da secretária do Arcebispo de Brasília Dom José Newton, meu cliente há vários anos. Após uma semana começou a falar o que havia ocorrido. Tinha sido brutalmente torturada. Levara inúmeros choques elétricos por todo o corpo, banhos de chuveiro gelado de madrugada, espancamento de maneira a não deixar marcas, etc., pois havia um médico que orientava as torturas. Sua confiança em mim foi aumentando na medida em que foi conseguindo me reconhecer. Disse-me que eu a havia examinado para admissão como funcionária do Banco do Brasil, há alguns anos. Também a reconheci, pois coincidentemente, era irmã da secretária do Diretor do Hospital e também irmã da secretária do Arcebispo de Brasília Dom José Newton, meu cliente há vários anos.

Foi justamente no ano de 1970 que iniciei a minha Formação em Psicanálise, com a Diretora do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, a psicanalista Prof.ª Virgínia Leone Bicudo. Creio que estando em tratamento psicanalítico, tolerei melhor a minha frustração de médico e de injustiça ética. Inclusive o ideal do jovem médico que experimentara em Brasília uma medicina mais integrada, valorizada pelo trabalho em tempo integral, conforme previsto inicialmente. Tínhamos um bip, que nos localizava a qualquer momento quando fora do hospital e nos informava sobre nossos pacientes internados. Por pouco, não me decepcionei totalmente com o exercício da Medicina.

Ao ingressar na Academia de Medicina de Brasília, novas esperanças surgiram, no sentido de batalharmos junto às entidades médicas e poderes públicos, por uma Medicina mais ética, mais aprimorada, mais humana e digna.

Atualmente, sinto-me bastante compreendido e reconfortado, com o convívio com meus atuais Confrades.

Brasília, maio de 2021